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A efeméride é histórica. Mas a Comissão Executiva da Estrutura de Missão para as Comemorações dos 600 anos do Descobrimento do arquipélago da Madeira guia-se pela tradição. Escolha que não suscita surpresa, pois a referida Comissão é constituída por pessoas sem formação científica em História.

Ignorando a História, vão assinalar no Porto Santo, em 1 de Novembro, a chegada dos portugueses. A data não tem fundamento histórico nem estatuto de tradição. Trata-se, quando muito, de uma tradição inventada.

Apenas o navegador veneziano Luís de Cadamosto referiu o 1.º de Novembro como o dia do descobrimento do Porto Santo. Cadamosto escreveu La prima Navigazione em 1455. Afirmou então que esta ilha fora descoberta há 27 anos, logo em 1428. Só isto bastaria para que não se desse fé à data indicada pelo veneziano, pois diversas fontes credíveis apontam para anos anteriores.

O devaneio de Cadamosto acentua-se, quando registou: «Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta pelos portugueses no dia de Todos os Santos […]». Trata-se de um explicação nunca valorizada pelos historiadores, porque a ilha já era denominada de Porto Santo, pelo menos 50 anos antes da viagem de Zarco e Tristão. Na realidade, o topónimo consta de mapas e crónicas desde a década de 1370.

Para a História e os historiadores, o 1 de Novembro não tem qualquer significado como dia do descobrimento da ilha do Porto Santo. Como sublinhou António Aragão em 1981, a indicação de Cadamosto «não merece o menor crédito».

Não venham os partidários da dita tradição dizer que os historiadores estão divididos e não chegam a consenso sobre esta matéria. É argumento que não colhe, porque nenhum historiador valoriza a fantasia de Cadamosto.

Quanto à tradição, convém esclarecer, de início, que requer tempo, consenso e fontes históricas fiáveis que a não desmintam.

A documentação histórica sobrepõe-se à tradição. Muitas tradições caíram pelo labor da historiografia, como, por exemplo, o «Milagre de Ourique», a «Escola de Sagres» ou aquela absurda narrativa, que o Padre Eduardo Pereira divulgou e defendeu, de mulheres porto-santenses cativas por piratas argelinos, que, depois de engravidadas no Norte de África, eram conduzidas pelos seus captores à sua terra natal, para assim se consumar a propagação da «raça» muçulmana.

A tradição do 1.º de Novembro mereceu o acolhimento da Comissão Executiva, sem qualquer parecer do Conselho Consultivo, órgão que deveria «contribuir para rigor histórico e contextualização de todo o programa comemorativo», mas que é, pura e simplesmente, ignorado.

Inventada pelos rotários funchalenses, esta tradição tem vida curta. Mão amiga porto-santense, a quem agradeço, fez-me chegar a informação de quando se começou a festejar o 1.º de Novembro, o que pude, posteriormente, confirmar na imprensa periódica do Funchal. Vai fazer agora 50 anos.

Em 1968, por iniciativa do Rotary Club do Funchal, comemorou-se, solenemente, o 550.º aniversário da descoberta do Porto Santo no dia 1 de Novembro, tendo sido descerrada uma lápide alusiva com a seguinte inscrição: 550.º ANO DA DESCOBERTA / DO PORTO SANTO / EM 1 DE NOVEMBRO DE 1418 / GONÇALVES ZARCO AQUI APORTOU / EM 1 DE NOVEMBRO DE 1968 / O ROTARY CLUB DO FUNCHAL / O RECORDOU.

Cinquenta anos de existência de um objecto não lhe confere a categoria de antiguidade, mas sim de uma velharia de trazer por casa. Outorgará igual período de tempo legitimidade a uma prática para ser considerada tradição? Eu sou mais velho do que essa tradição. Os presidentes da Comissão Executiva e da Câmara Municipal do Porto Santo também têm mais idade do que a tradição que defendem!

Não se trata de costume ancestral, com a marca e a solidez do passado. Resultou apenas dos fracos conhecimentos em História dos rotários funchalenses, que, em 1968, quiseram, voluntariosamente, festejar os 550 anos do descobrimento do Porto Santo. Os principais promotores dessa iniciativa foram: Tomás Pita da Silva, José Silvestre Camacho, Mário Barbeito Vasconcelos e Jaime Afonseca Teixeira. Assim se gerou uma tradição inventada.

Deverá uma tradição inventada, com apenas 50 anos, sobrepor-se à História? Poderá a tradição inventada derrogar a ciência? E como ficarão os jovens que, na escola, na universidade e nos manuais e livros de História, aprendem de uma maneira e a Câmara e o Governo Regional promovem de outra?

Sobre este assunto, já dei, por diversas vezes, nos últimos anos, a minha opinião: não há fundamento histórico para celebrar, no dia 1 de Novembro, a chegada dos portugueses à ilha do Porto Santo. Apesar de muitos o desejarem, a História não pode legitimar a tradição inventada.

Não haverá uma voz porto-santense que se levante contra o embuste que os bem-intencionados rotários funchalenses impuseram à sua ilha, em 1968?

Francisco Alcoforado e Jerónimo Dias Leite dão informações verosímeis sobre a data do acontecimento, ambos indicando o mês de Junho:

«[…] mandou-lhe El-Rei fazer prestes um navio e um barinel; partimos de Restelo na entrada de Junho e fomos demandar a ilha de Porto Santo que havia dois anos era descoberta por uns navios de castelhanos que iam para as ilhas de Canárias […]» (Francisco Alcoforado, finais do século XV)

«Partidos de Lisboa com vento próspero no mês de Junho, vieram demandar o Porto Santo, ao qual chegaram em poucos dias […]» (Jerónimo Dias Leite, c. 1579)

Segundo o cronista Gomes Eanes de Zurara, esta viagem ocorreu depois do regresso do Infante D. Henrique a Portugal, após o descerco de Ceuta, ocorrido em Outubro de 1419, e a subsequente tentativa infrutífera da conquista de Gibraltar no Inverno. Assim, face aos documentos conhecidos, Junho de 1420 é a data mais provável da chegada da barca de Zarco e Tristão à ilha do Porto Santo.

Não foi, porém, este o entendimento da Comissão Executiva nem do Governo Regional. Prescindiram da História e apadrinharam a tradição inventada, desvinculando-se de deveres institucionais e fazendo cálculos eleitoralistas. Com tal procedimento, denegaram também a madeirensidade e a autonomia: preteriram o testemunho de um madeirense, Jerónimo Dias Leite, o nosso primeiro cronista, em favor do veneziano fantasioso, Luís de Cadamosto.

PS: A escultura, que eu gostaria de ver nos 600 anos do Porto Santo, haveria de ser dedicada ao porto-santense, que, durante estes séculos, demonstrou impressionante resiliência, contra fomes, secas, epidemias, ataques de piratas e corsários, cativeiros e outras pragas e misérias. Preferia uma homenagem contemporânea ao povo do Porto Santo do que uma estátua do Senhor da Ilha, concebida há quase 90 anos para uma exposição colonial. Inaugurar estátuas ou bustos de D. Henrique era costume do “Estado Novo”, que inundou o Império com a imagem do Infante.

NELSON VERÍSSIMO
Professor – Universidade da Madeira

*Artigo de opinião publicado no Funchal Notícias / 31-10-2018

 

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